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Alexandra Loras: uma voz pela igualdade
Eduardo Burckhardt, Editor | Blog PayPal BR & Latam
 
Faz parte do métier de uma consulesa representar o seu país em recepções, eventos, atividades diplomáticas e ocasiões especiais. No Brasil desde 2013 acompanhando seu marido, Damien Loras, cônsul-geral da França, a jornalista Alexandra Loras bem poderia dedicar-se apenas a esse circuito glamoroso. Porém, ela decidiu ir além dos salões da alta sociedade. Levantou a bandeira contra a desigualdade racial e social e se tornou uma das principais porta-vozes da causa no País.
Dizer que Alexandra atua incansavelmente nessa frente não é mera figura de linguagem. Na agenda, concilia as atribuições de consulesa com reuniões, mesas-redondas, entrevistas e palestras – “De uma a duas por dia” – sobre temas que envolvem preconceito e a estigmatização dos afrodescendentes, dá aulas voluntárias para refugiados haitianos no Centro de São Paulo e ainda arranja tempo para abastecer o seu blog sobre dignidade negra.
Ser uma fonte de inspiração para outras mulheres no resgate da autoestima é uma espécie de catarse para Alexandra ou, como diz, uma “justiça restaurativa”. Filha de pai imigrante africano e mãe francesa de origem judaica, Alexandra nasceu no bairro de Tarterêts, um gueto na Grande Paris, e desde cedo sentiu na pele o preconceito - que não a abandonou, mesmo quando chegou a ser apresentadora de TV na França.
Um turning point nesse caminho aconteceu com a leitura do livro As Minhas Estrelas Negras – de Lucy a Barack Obama, de Lilian Thuram, com entrevistas de 42 personalidades afrodescendentes que marcaram a história. “Achei muito forte e decidi fazer um mestrado sobre a invisibilidade do negro na televisão francesa”.  Segundo ela, ali começou uma revolução interna que encontrou, no Brasil, a chance de ser extravasada e ganhar voz. Oportunidade que ela abraçou sem medo. Com a palavra, a consulesa Alexandra Loras:
 
 Fotografia: Antonio Dantas
 
CHANCE DE FALAR
“As conversas e palestras que faço são como uma justiça restaurativa. Foi de maneira muito orgânica que elas aconteceram e, hoje, são uma ou duas a cada dia. Eu seria incapaz de fazer na França o que estou fazendo no Brasil, porque meu país me ensinou a me calar - assim como os negros aqui aprenderam a se calar. Porém, como estou usando a outra parte do meu cérebro com o português, é menos visceral. É como consigo falar desses assuntos. Sofro racismo no Brasil, mas não me machuca tanto como em meu próprio país, onde muitos jovens sofrem por não terem identidade, não serem representados ou aceitos como franceses.”
TURNING POINTS
“Quando li o livro As Minhas Estrelas Negras, de Lilian Thuram, minha vida mudou. Comecei a descobrir todas as invenções criadas por negros, sua história, seu passado como reis e rainhas. O eurocentrismo apagou tudo isso. Decidi fazer um mestrado sobre a invisibilidade do negro na televisão francesa e começou uma revolução dentro de mim. Quando cheguei ao Brasil, a causa que me abraçou mais do que eu abracei a causa. E o que foi incrível da dualidade do Brasil é que a mídia me deu muito espaço para falar como consulesa - porque, claro, meu título é que me dá a legitimidade. Não sei se na França uma estrangeira poderia talvez trazer uma crítica sobre a nossa sociedade e ser escutada com tanta empatia e compaixão. O retorno que tenho, os e-mails que recebo, nutrem a minha alma.”
 
“O Brasil vai sempre ser um país que, realmente, me ajudou muito a resgatar  a autoestima e ir além dela para ajudar um povo oprimido que não tem muito espaço para reivindicar.”
 
Alexandra com o marido Damien Loras, cônsul-geral da França, e o filho Raphaël. Fotografias: Antonio Dantas
 
NA PRÓPRIA PELE
“O protocolo francês faz questão que eu fique na entrada da casa para dar boas-vindas para todos os convidados do consulado. E acontece que muito brasileiros passam na frente de mim ou atrás achando que eu sou uma funcionária. Eles nem se dão conta de que, mesmo se eu fosse uma funcionária, gostaria de não ser invisível. É muito humilhante. São ações veladas que é difícil enxergar quando você não é negro. No Pinheiros [tradicional clube de São Paulo],  uma vez esqueci minha carteira e fui impedida de entrar. Mesmo com o meu sotaque e minha maneira de vestir, a atendente não ouvia eu dizer que era sócia e continuava procurando meu nome na lista de acompanhantes. A caixinha mental dela não podia me enxergar como possível sócia do clube. Da mesma forma, já me barraram em um hotel cinco estrelas em Salvador. Só deixaram entrar quando ouviram meu sotaque e mostrei mais atitude. Claramente, se fosse uma negra brasileira não deixariam entrar.”
DESIGUALDADE ATÁVICA
“No Brasil, estamos em um sistema democrático que promove a igualdade, mas, se olhamos realmente para dentro dessa democracia, é ainda uma oligarquia moderna disfarçada, no sentido de que 85 famílias brasileiras detêm mais de 55% da economia. A abolição da escravatura não foi suficiente para acabar, de fato, com a escravidão. Se você ganha 1.200 reais em São Paulo - ou seja, 800 reais efetivamente no seu bolso no final -, é apenas sobrevivência, porque é uma das cidades mais caras do mundo. Como é possível morar com dignidade com 800 reais? Como isso pode acontecer no sétimo país mais rico do mundo e nono maior PIB do planeta?”
“O Brasil tem potencial para ter infraestrutura, transporte, saúde e educação como nos Estados Unidos ou na Europa, mas prefere ter 70% de seu povo como analfabeto funcional. De uma certa forma, é conveniente deixar o povo não entender bem o que está acontecendo, para ele não se rebelar.”
DUALIDADE À BRASILEIRA
“É interessante enxergar a dualidade do Brasil. O país cordial, miscigenado, do Carnaval, do samba, da felicidade, da proximidade, do ‘tudo joia’, mas onde, ao mesmo tempo, há o racismo. Eu gosto de perguntar para os brancos que acham que não existe racismo no Brasil: Quantos amigos negros você tem? Onde você vê os negros nos círculos de poder e de liderança? Onde eles estão entre os executivos? Onde estão no governo? E isso se reflete nas novelas. A mulher negra é sempre estigmatizada como a faxineira, o homem negro é sempre o malvado, o traficante. Não por acaso, em pesquisas já realizadas, 85% das crianças negras de menos de 5 anos escolheram a boneca branca como a boazinha e a negra como a feia, a má.”
Fotografia: Antonio Dantas
SOLUÇÕES POSSIVEIS
“Para mim, uma solução é ter roteiristas negros escrevendo na televisão e não deixar apenas brancos escreverem sobre os negros. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos vários canais para negros. Às vezes escuto pessoas falarem que a revista Raça é muito racista, só para negros. Mas essas pessoas não se dão conta que todas as outras revistas são para brancos, nós não aparecemos! Dizem que somos racistas quando estamos tentando resgatar nossa própria autoestima, nossa dignidade de existir.
Então é preciso ter roteiristas negros. Não só um, mas uma  equipe para desenvolver séries como Bill Cosby Show, que retratava uma família na qual o pai negro era médico, a esposa era advogada, tinham cinco filhos e moravam no melhor bairro de Nova York. Essa série me ajudou muito a desenvolver a autoestima quando criança. Assim como a The Fresh Prince of Bel-Air[conhecida no Brasil como Um Maluco no Pedaço] com o Will Smith. A série mostrava uma família de negros poderosos e trabalhava muito na narrativa o imaginário da criança negra, mostrando que é possível chegar lá. Mas é preciso fazer produções brasileiras, não colocar na novela só uma advogada negra que vem da favela e reproduzir estereótipos.
Outra solução é colocar dentro dos livros didáticos personagens como Teodoro Sampaio, Machado de Assis e outras grandes figuras negras. Mostrar para os estudantes que a geladeira, o marca-passo, a antena parabólica e o celular foram criados por negros. Precisamos desconstruir um pouco o eurocentrismo, que apagou outras civilizações e culturas.”
MERITOCRACIA E COTAS
“Atualmente, o que é interessante [nas discussões sobre igualdade] é não ter vingança ou retaliação. O branco de hoje não é o responsável pelo aconteceu ontem, pela escravidão. Temos que tirar esse peso das costas do branco. Precisamos ter no foco que é necessário o branco ao nosso lado para cuidar da sociedade. Porém, falar de meritocracia não existe, porque se você já começou aqui e o negro ali, não tem meritocracia para entrar na USP, por exemplo.
“Hoje, precisamos do sistema de cotas para equilibrar. É uma solução temporária, mas necessária por, pelo menos, uns 10 a 20 anos.”
RACISMO NAS EMPRESAS
“Tenho um amigo negro que trabalha em um banco e, certa vez, estava na copa do escritório e um trader entrou o pediu dois cafés para ele. Ele é estrangeiro, não fala bem o português, e ficou meio assim sem saber o que fazer. O brasileiro repetiu:  “Dois cafés, moço!”. Só quando meu amigo respondeu “Sorry” o trader se deu conta que não era um atendente. Na cabeça dele era impossível ver um negro que não seria outra coisa além da pessoa que serve café.” 
 Alexandra em sua casa, em São Paulo. Fotografia: Antonio Dantas.
PRECONCEITO NA REDE
“Com relação aos recentes casos de racismo na Internet, é importante falarmos sobre isso. Porque se não olharmos o problema, suas causas e as consequências, é difícil enxergar que ele ainda existe. Fica naquilo de dizer que somos um povo miscigenado, então tudo bem. E olha que estamos falando da Tais Araújo, da Maju e da Sheron Menezzes, pessoas que estão na mídia! Mas há milhares de meninos e meninas que sofrem de racismo todos os dias e ninguém diz nada, porque eles não têm voz na mídia. Imagine, se acontece com a gente na nossa posição , com nosso poder, como é para uma criança negra?”.
BRASIL, UM TERRENO FÉRTIL
“Diferente das colonizações espanholas, inglesas ou francesas, os portugueses usaram o Brasil como uma empresa. Vinham, extraíam e voltavam. Então não deixaram marcas culturais tão arraigadas e, de uma certa forma, os povos indígena e africano conseguiram estabelecer uma cultura própria muito forte - ao redor da natureza, das matrizes das religiões africanas. Isso deu ao Brasil um povo com uma complexidade maior em comparação com o latinos. Há um interculturalismo.
Hoje, a produção intelectual brasileira é uma das maiores do mundo. Para mim, o que está acontecendo aqui é o tempo das luzes! Como o brasileiro [por suas origens coloniais] não foi muito acadêmico, tem uma cabeça mais aberta - é como um adolescente rebelde. Está mais aberto à polêmica e à crítica que o resto do mundo, que é muito preso à dimensão acadêmica de que cada pensamento tem que ter uma referência filosófica. Isso se reflete no que está acontecendo hoje no poder, de colocar luz sobre toda a corrupção, na polêmica de sair às ruas, nas manifestações, nessa revolução não tão silenciosa. Isso vai entrar para a história.”
 
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